quinta-feira, 28 de maio de 2009

Dia desses uma moça me sorriu gentil pelas ruas de Icaraí.Uma gari,42 anos,quatrocentosequinzereaisaomês,cabelos escovados e lábios pintados de carmim.Ela me sorriu com uma alegria de quem não tem as mãos caleijadas,e não veste um uniforme que a identifica como uma prestadora de serviços.Ela não estava isenta de sua genuína beleza,no entanto não tinha identidade.Podia ser Maria,Joana,Helena ou Vera,mas naquele momento era somente uma mulher que varria as ruas.Aquele sorriso me disse mais do que eu esperava receber.Ela não tinha a fragilidade de Sylvia Plath,e nem mesmo a altivez de Cristiane Torloni.Ela podia ser Maria,Joana,Helena E Vera.Multifacetada e descolorida,era a mulher que eu vi na rua.Por debaixo do uniforme desforme,ela decerto escondia uma lingerie rendada,e uma cicatriz de cesaria.Era uma mulher generosa,e pude ver que as unhas estavam impecavelmente feitas.Café bem forte de manhãzinha,o almoço já preparado pra quando as crianças acordarem,a faxina ficou para o sábado,e a encomenda da vizinha chegaria hoje mesmo:havia comprado lençóis novos para a pequena cama de casal.A noite chegava se dissipando em vapor enquanto aquela mulher rumava de volta pra casa,onde telefonaria para a sogra,fumaria um cigarro na janela,e ensinaria a lição de casa às crianças.De madrugada cumpria sua função de mulher,e assim acordava sorridente no dia seguinte.E qual é o dia seguinte de nossas vidas?É uma página que já vem escrita,são fatos que se acumulam uns sobre os outros e assumem o controle sem que nos demos conta.O dia seguinte é simplesmente a continuação do vício de ontem,que será o mesmo vício de amanha.E para uma mulher,seja ela a gari da rua,a Sylvia ou a Cristiane,o dia seguinte é a incógnita do desejo alheio,é a resposta que precede o silêncio;é a angústia que antecede o choro.Para uma mulher,o que ela vale é o que ela doou.E é difícil saber quanto se tem num mundo onde só se perde,mesmo que seja preciso perder pra ganhar.E no dia em que a moça me sorriu feliz,fui eu quem perdi.

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